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Entrevista: Gilmar Mendes adota tom conciliatório e pede união nacional

Para ministro, enfrentamento da atual crise é mais importante do que a discussão do impeachment

Por Isadora Peron — De Brasília

29/03/2021 05h01 Atualizado há 4 horas

Após protagonizar a maior derrota já imposta à Lava-Jato, o ministro Gilmar Mendes evita sacramentar o fim da operação que desvendou o escândalo de corrupção na Petrobras. Em entrevista ao Valor, ele diz que a suspeição do ex-juiz Sergio Moro no processo do tríplex do Guarujá deve se estender aos demais casos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas que isso não é automático para os outros réus.

Gilmar evita críticas diretas ao ex-magistrado e defende que uma investigação não pode se transformar em um “vale tudo”. “Tem que ter regras, do contrário você paga o preço de eventual nulificação de todo o trabalho. Esse é sempre um risco de se fazer um trabalho malfeito”, diz.

Gilmar afirma ainda que o plenário deve chancelar a decisão do ministro Edson Fachin, que anulou as condenações impostas a Lula pela 13ª Vara Federal de Curitiba. O julgamento está marcado para o dia 14 de abril. No entanto, diz não acreditar que a Corte derrube a decisão sobre a parcialidade de Moro, que foi tomada no âmbito da Segunda Turma, colegiado que reúne cinco dos 11 ministros.

O ministro, que chegou a pedir a demissão do agora ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, adota um tom conciliador e diz esperar que haja, enfim, uma “união nacional” para resolver o problema da pandemia. Ele afirma ainda que não é momento para discutir o impeachment do presidente Jair Bolsonaro e que não acredita em ruptura institucional em 2022 mesmo que Lula dispute – e vença – as eleições.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: O ministro Fachin disse temer que a suspeição de Moro leve à anulação de toda a Lava-Jato. O senhor concorda?

Gilmar Mendes: Eu não vejo dessa maneira. Entendo que a questão está limitada aos processos do ex-presidente Lula. Nós só julgamos na Turma aquela primeira condenação, do tríplex. Muito provavelmente isso pode ser estendido aos outros processos do ex-presidente, mas essa é uma questão que tem que ser analisada em cada caso. Eu não vejo essa abrangência vislumbrada pelo ministro Fachin. Por outro lado, a questão da competência da Vara de Curitiba pode ter uma abrangência bastante vasta, mas isso tudo terá que ser considerado a seu tempo.

 

Valor: A decisão de Fachin de anular as condenações impostas a Lula vai receber o aval do plenário?

Gilmar: Imagino que sim, porque é o relator que está encaminhando essa orientação, é ele quem se debruça sobre os processos. Além disso, há paradigmas no plenário de que só diziam respeito à Vara de Curitiba os processos que tivessem a ver com corrupção na Petrobras. Por isso o pleno, e também a Turma, tem tirado processos e afirmado a incompetência da 13ª Vara.

 

Combater a corrupção, sim. Combater o crime, sim. Mas você não combate o crime cometendo crime”

 

Valor: O plenário pode derrubar a decisão da Turma sobre a suspeição de Moro, caso considere que o habeas corpus perdeu o objeto?

Gilmar: Eu creio que não. Não vislumbro que isso vá ocorrer.

 

Valor: A suspeição de Moro para os outros casos em que Lula foi condenado é automática?

Gilmar: Isso tem que ser examinado em cada caso. O nosso foco todo foi a primeira condenação.

 

Valor: Como o seu voto foi o vencedor no caso de Lula, o senhor vai ser o relator dos pedidos de suspeição para todos os casos em que o Moro atuou na Lava-Jato?

 

Gilmar: Vamos aguardar. Vamos publicar o acórdão e depois fazer os encaminhamentos.

 

Valor: E para os casos de Lula?

Gilmar: Ah, sim, se houver pedidos de extensão.

 

Valor: A mudança de voto da ministra Cármen Lúcia surpreendeu?

Gilmar: Tem acontecido de a ministra Cármen nos acompanhar. Às vezes, Fachin fica isolado e, às vezes, temos até unanimidade [na Segunda Turma].

 

Valor: O senhor conversou com ela sobre esse caso?

Gilmar: Não, não tive nenhuma conversa. Ela já vinha dando sinais que estava preocupada com essa questão do devido processo legal. Você deve se lembrar daquela questão da ordem dos delatados e delatores, ela votou no sentido de que aquilo era uma cerceação do contraditório e da ampla defesa. Há vários exemplos nesse sentido, como o direito de acesso às mensagens da Operação Spoofing.

 

Devemos pensar em união. Depois, a responsabilidade de cada um na pandemia vai ficar caracterizada”

 

Valor: O senhor fez duras críticas ao voto do ministro Kassio Nunes Marques na terça-feira. Conversaram depois do julgamento?

Gilmar: Faz parte do debate, é o modo de enfatizar os argumentos, algo

absolutamente normal.

 

Valor: Durante o julgamento, o senhor defendeu que é preciso haver mudanças no Judiciário. O que sugere?

Gilmar: Nós precisamos aprofundar e discutir a figura do juiz de garantia. Nós também precisamos melhorar a atividade de corregedoria. Isso vale tanto para a Justiça quanto para o Ministério Público. A investigação penal não é um vale tudo. Tem que ter regras, do contrário, você paga o preço de eventual nulificação de todo o trabalho. Esse é sempre um risco de se fazer um trabalho malfeito, do ponto de vista do devido processo legal, e depois então ter o comprometimento de todo o trabalho que foi feito. E ali, pelo que se viu, em Curitiba, nós tínhamos esse consórcio entre juiz e procurador. Essa parceria, que era muito confortável, era um desequilíbrio do jogo processual. Obviamente, isso nada tem a ver com o processo dos países democráticos, nada tem a ver com o nosso sistema. Combater a corrupção, sim. Combater o crime, sim. Mas você não combate o crime cometendo crime.

 

Valor: Esse suposto consórcio entre juiz e acusação ficou mais claro depois da Operação Spoofing?

Gilmar: O que vem sendo revelado, ilumina fortemente isso.

 

Valor: O STF terá que discutir a validade de mensagens obtidas pelos “hackers”?

Gilmar: Não vejo como o Tribunal se posicionar abstratamente sobre isso, certamente terá que ser a partir do uso que alguém faça em dado processo.

 

Valor: A defesa de Lula tem analisado o conteúdo das mensagens.

Gilmar: A Turma decidiu que ele poderia ter acesso, mas ele não usou [no HC que pediu a suspeição de Moro]. Ao contrário até do que foi dito na terça-feira, eles não juntaram aos autos. Faz parte de uma informação de caráter histórico, de caráter político, de valor geral. Agora, se vier a ser juntado, pode se discutir se uma prova ilícita, que não serve para condenar ninguém, pode servir eventualmente para inocentar ou absolver.

 

Valor: Então a discussão será caso a caso?

Gilmar: Até agora, nós não dissemos nada sobre a validade ou não da prova, simplesmente estava se garantindo o acesso [a Lula]. Há muitas questões, que podem ser desdobradas. Uma coisa que me desperta sempre bastante curiosidade é que ali se fala muito de cooperação com a Receita, uma cooperação informal. A partir dessas informações, pode se chegar a uma investigação, feita pela própria Receita, sobre se houve ou não esse tipo de investigação ilegal, com a verificação dos dados, dos computadores, de quem

acessou etc.

 

Valor: E a figura do ex-juiz Sergio Moro, como fica? Ele já foi visto como um herói nacional.

Gilmar: Vamos aguardar. Tem que se dar tempo ao tempo. Tem que esperar, inclusive, que todo esse quadro fique muito mais claro. Nós ainda não terminamos todo esse processo.

 

Valor: O que achou da decisão do procurador-geral da República, Augusto Aras, de acabar com a força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba?

Gilmar: Ao longo desse tempo, nós vimos algumas dificuldades que mostram que, de alguma forma, o rabo passou a abanar o cachorro, e não o cachorro a abanar o rabo. Exemplo: a Petrobras entregou um cheque de R$ 2,5 bilhões à força-tarefa de Curitiba e ali estava se formando uma fundação, que, aparentemente, seria usada para combater a corrupção, e que contrataria os próprios procuradores. Tudo muito estranho, muito obscuro. E a procuradora-geral [Raquel Dodge] não conseguiu cancelar essa fundação, ela teve que vir ao Supremo. Esse é um fato que mostra bem que essas entidades tinham se deslocado da própria estrutura. Veja, a força-tarefa havia se tornado uma entidade, que se descolava da própria Procuradoria. Talvez foi essa perspectiva que o procurador-geral [Aras] percebeu, que havia um ovo da serpente nessas forças-tarefas.

 

Valor: Na semana passada, o presidente nomeou outro ministro da Saúde e criou um gabinete de crise para combater a pandemia. Dá tempo de corrigir os rumos?

Gilmar: Eu espero que sim e faço todos os votos para que o novo ministro Marcelo Queiroga encontre aí os caminhos e tenha autonomia para compor uma equipe técnica. Faz exatamente um ano que eu estive com o presidente da República, pela primeira vez, para conversar sobre isso. Naquela época, levei a ele proposta do decreto do governo Fernando Henrique Cardoso que instituiu aquela comissão que tratava do racionamento de energia. E eu dizia ao presidente, nessa conversa, que o tema que nós lidamos lá atrás, que tinha sido o apagão, em 2001, 2002, era muito mais simples, do que o tema de agora. Porque lá nós tratávamos de eletricidade, e a União era competente para legislar sobre esse tema. Aqui não, o tema da saúde é um tema que tem uma competência compartilhada, entre União, Estados e municípios. Portanto, essa coordenação também teria que envolver, de alguma forma, representantes de Estados e municípios.

 

Valor: Mas o presidente tem usado a decisão do STF, de que União, Estados e municípios têm competência concorrente na pandemia, para se eximir da responsabilidade.

Gilmar: O STF jamais disse que a União deveria ficar ausente.

 

Valor: O inquérito aberto contra Pazuello foi enviado à primeira instância. Que consequências essa investigação pode ter?

Gilmar: Vamos aguardar. Isso é uma questão que tem muitas conotações. Eu sei que ele estaria sendo investigado por conta daqueles eventos em Manaus, pela falta de oxigênio, aí depende dos dados fáticos que forem trazidos e descobertos no inquérito.

 

Valor: A gestão de Pazuello, que é general da ativa, macula a imagem das Forças Armadas? No ano passado, o senhor chegou a dizer que Exército se associou a um “genocídio”.

Gilmar: Eu tenho a impressão que, neste momento, nós devemos envidar todos os esforços para obtermos uma saída para essa crise. Não vejo antimonia entre saúde e economia. Isso precisa ser resolvido. Na semana passada, eu encorajei o ministro Luiz Fux a participar dessa reunião [do comitê de enfrentamento à pandemia criado por Bolsonaro] e acho que devemos dar toda a contribuição. Acho que devemos realmente pensar em uma união nacional para resolvermos esse problema. E depois, obviamente, a responsabilidade de cada um na história vai ficar devidamente caracterizada, certamente alguns agiram de uma forma, outros, de outra, e isto é uma questão que daqui a pouco a gente vai saber.

 

Valor: Esta segunda onda não poderia ter sido evitada?

Gilmar: Ninguém esperava que teríamos essa segunda onda com tanta força, e as pessoas, que ainda não se recuperaram do primeiro trauma, estão aí às voltas com o segundo, que inclusive é mais chocante, se olharmos o número de óbitos por dia. Nós não podemos nos dar ao luxo de apostar em divisões. Acho que devemos fazer todo o esforço no sentido de buscarmos uma unificação. Há quantos anos o Brasil não tem uma guerra que afetasse o seu território de maneira tão direta? Nós estamos vivendo um estado de guerra, uma guerra silenciosa, mas mortífera. Estamos falando de 300 mil mortos, da destruição de uma parte significativa da economia. Então nós temos que ser criativos, esse é o desafio.

 

Valor: Há uma preocupação com decisões de juízes de primeira instância, que trazem insegurança jurídica para o dia a dia do combate à pandemia. O que pode ser feito?

Gilmar: É natural que haja recursos dessas decisões, os tribunais têm a noção da responsabilidade, e acho que é possível se encontrar uma uniformidade em relação a isso. É fundamental que o governo traga elementos, informações, para que essas medidas de contracautela, possam avançar. Mas também não se pode impedir que as pessoas recorram ao Judiciário, esse é um direito fundamental. Esse é um dos incômodos, mas também da grandeza da democracia.

 

Valor: Há espaço para debater o impeachment do presidente?

Gilmar: De novo, eu vejo a necessidade de que tentemos construir o consenso. Não vejo como, nesse ambiente, de crise tão profunda, possamos aprofundá-la com novos dissensos, disputas, e coisas do tipo. Dos quatro presidentes eleitos, Fernando Henrique e Lula foram os únicos que terminaram os mandatos. Eu tenho discutido se não seria o momento de melhorarmos o sistema eleitoral, se nós não poderíamos, com a redução dessa base partidária imensa, pensar em um semipresidencialismo, onde o presidente teria um papel, seria eleito, mas a função governativa poderia ser de um primeiro-

ministro.

 

Valor: Há um temor que o resultado das eleições de 2022 seja muito questionado. Há risco de ruptura institucional ou de ocorrer algo parecido com o que aconteceu nos EUA, com a invasão do Capitólio?

Gilmar: Cada momento histórico tem que ser analisado com cuidado, e nós temos que estar sempre atentos. Nós vimos que aquele inquérito das “fake news”, e depois o inquérito dos atos antidemocráticos, eles contribuíram para uma certa pacificação, separando o que era direito de manifestação de atos que deveriam ser reprimidos. Desde então, esse tipo de agressão às instituições cessou. Acho que essa foi uma contribuição que o Tribunal deu para essa pacificação. Eu tenho a expectativa que as coisas vão fluir, o próprio movimento que o presidente fez, de buscar uma base mais sólida, mostra que nós estamos diante daquilo que se chamou de um presidencialismo de coalizão, que se formou em outros momentos no Brasil, uma base ampla para permitir a aprovação de reformas, a sustentação do governo.

 

Valor: Mas Bolsonaro questionou até o resultado da eleição de 2018, da qual foi vencedor.

Gilmar: Os questionamentos em relação à Justiça Eleitoral me parecem, em linha de princípio, muito panfletário. Até hoje nós não tivemos nenhuma prova de fraudes. O próprio PSDB pediu uma recontagem [em 2014], mas o candidato à Presidência do PSDB [Aécio Neves], que foi excelentemente bem votado em todo o Brasil, perdeu em Minas, que era seu Estado de origem. Ao fim e ao cabo, foi mais um problema político, do que da urna eletrônica, que acaba se tornando um bom bode expiatório.

 

Valor: Nas eleições do ano passado, houve um ataque “hacker” ao sistema do TSE. Isso preocupa?

Gilmar: Com certeza, mas, até aqui, o sistema tem se provado resiliente a esse tipo de ataque. A urna é isolada e o sistema é completamente verificável.

 

Valor: Como o senhor vê a candidatura do ex-presidente Lula? As Forças Armadas enviaram diversos recados contra o PT nos últimos anos.

Gilmar: O PT pode ter tido vários problemas administrativos, mas não consta que tenha causado incômodo ou conflito no âmbito das Forças Armadas. Houve um esforço muito grande do governo Lula de fortalecimento das Forças Armadas, com a compra de equipamentos. Não me parece que haja razão para preocupação de que vamos ter crise institucional em relação a isso.

 

Valor: Existe espaço para uma terceira via em 2022?

Gilmar: Eu estou sendo repetitivo, mas acho que temos que concentrar todas as nossas energias agora para resolvermos esta crise. Nós temos que pensar num tipo de assistência social, de ajuda para as pessoas, temos que pensar de forma holística, de forma completa. Esse desafio é tão grande que isso, por si só, consumiria toda a nossa força e a nossa inteligência. Então, eu acredito que devemos reduzir nossos potenciais conflitos, e essas disputas políticas elas incutem conflitos inevitavelmente, para que a gente possa, até o fim do ano, ter esse problema, se não totalmente resolvido, equacionado e aí sim, no ano que vem, vamos discutir candidaturas e alternativas.

 

Valor: Quando pretende se manifestar sobre as ações que questionam a Lei de Segurança Nacional?

Gilmar: Por enquanto, estou pedindo informações, porque se trata de um tema muito relevante. Não é possível simplesmente dizer em uma decisão liminar que a lei não foi recebida pela Constituição de 1988, depois de tantos anos de vigência. Então temos que agir com cautela. E, claro, que tem que ser uma decisão do colegiado. Por isso não se pode precipitar, embora haja um certo clamor público hoje contra a lei, porque seria resquício de um regime autoritário.

 

Valor: Mas há algum prazo?

Gilmar: Nem tão devagar, nem tão depressa, para que de fato se faça esse exame. Eu acho que esse debate é útil também para estimular o Congresso. Há várias propostas lá e eu acho que o ideal, neste momento, seria que o Congresso se debruçasse sobre essa questão e tirasse uma conclusão, uma nova lei.

 

Valor: E o processo que questiona o foro do senador Flávio Bolsonaro no caso das “rachadinhas”, quando será submetido ao colegiado?

Gilmar: Daqui a pouco, certamente, vai ser pautado, estamos aguardando.

 

Valor: Como está a relação com o presidente do STF, Luiz Fux?

Gilmar: Temos conversado. Todo mundo que passa pela presidência tem que saber, na verdade, que ele não é chefe de nenhum ministro, ele é um coordenador de iguais. Claro, que tem um protagonismo de representação pelo Tribunal, mas o Tribunal fala pela sua maioria, e isso precisa ser entendido.

Da redação com o VALOR ECONÔMICO

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